Pandemia e desgovernos — o que foi o ano de 2021 para o movimento indígena?

Vitor Correia
8 min readAug 22, 2023

Em reflexões sobre os principais acontecimentos da luta indígena no ano, ativistas originários debatem as mudanças e os próximos passos pela resistência

Entre lutas contra a pandemia da Covid-19 que matou mais de 600.000 brasileiros em um período de aproximadamente 2 anos, a lutas políticas diretas contra medidas governamentais e uma forte resistência para preservar sua própria existência e seu próprio território. O ano de 2021 definitivamente não foi fácil para povos originários.

2021 consistiu em grandes batalhas políticas e sociais. Logo em janeiro, ativistas e engajados na causa precisaram combater a desinformação e o compartilhamento de notícias falsas sobre a Covid-19 que fizeram com que muitos originários se recusassem a tomar a vacina. A Campanha #VacinaParente ganhou ainda mais força como resposta para promover a imunização de nativos.

Em fevereiro a Funai decidiu mudar os critérios de identificação indígena. O que antes era definido por autodeclaração da pessoa, passou a ser por avaliações e critérios da fundação. Entre os requisitos, destacam-se: vínculo histórico com algum povo, autodeclaração, ascendência pré-colombiana e identificação de características culturais. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou e repudiou as alterações, declarando que a Fundação não consultou representantes e lideranças indígenas e que a identificação de povos originários não deve ir além da autodeclaração. No mês seguinte, o ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu a iniciativa.

O Brasil bateu a marca de 1000 mortes de indígenas devido á Covid-19 no mês de março. Na época do recorde, foram contabilizados 50.468 casos de contágio entre 163 povos (fonte: Brasil de Fato).

Donos de garimpo ilegal do Pará planejam protesto em Brasília no dia 19 de abril, considerado o Dia da Resistência de Povos Indígenas. As lideranças garimpeiras que exploram a Terra Indígena Munduruku estavam organizando vaquinhas entre empresários e comerciantes da região (fonte: Apib). No mesmo dia 19, a Esplanada dos Ministérios teve manifestações organizadas pela Apib pedindo por justiça aos povos indígenas. Com placas e projeções, ativistas originários marcaram presença em Brasília para lutar por direitos e se posicionar contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (fonte: Mídia Índia).

Abril também foi marcado pelas acusações feitas pela Funai contra Sônia Guajajara, coordenadora da Apib, que resultou na intimação pela Polícia Federal para esclarecer sobre “falas difamatórias” contra o Governo Bolsonaro e suas políticas envolvendo questões indígenas presentes na websérie “Maracá”, lançada em 2020 (fonte: Carta Capital). No mês seguinte, a intimação teve trancamento imediato após manifestações de advogados indígenas da Apib contra a PF e pedido de Habeas Corpus (fonte: Mídia Índia).

No mesmo mês de maio, povos originários tiveram mais uma vitória. De autoria da deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR), o Projeto de Lei 5466/2019 foi aprovado no dia 11. O PL consiste na alteração do termo “Dia do Índio” para o Dia da Resistência dos Povos Indígenas, comemorado no dia 19 de abril (fonte: Mídia Índia).

Porém, maio também teve a presença de outros Projetos de Lei que iam contra a causa indígena. Foi colocado em pauta pelo Senado o Projeto de Lei nº 210/2021, conhecido também como PL 510. O projeto tem como base a regularização fundiária e o incentivo à grilagem, ou seja, a ocupação de terras públicas ou de terceiros com o uso de documentações falsificadas (fonte: O Eco). Além disso, Arthur Lira colocou o PL 3729 em pauta, que consiste no fim do licenciamento ambiental, enfraquecendo a proteção ao meio ambiente (fonte: Mídia Índia).

Isso nos leva a um dos principais projetos de lei que vão contra a luta e a existência de povos originários do ano de 2021. O PL nº 490/2007 voltou à tona em junho pela Comissão de Constituição e Justiça, presidida pela deputada Bia Kicis (PSL), que identificou o projeto como constitucional. Conhecido como o marco temporal de terras indígenas, uma decisão como essa definiria o rumo de mais de 300 processos de demarcação de terras originárias, levantando a possibilidade de diversos indígenas serem expulsos de suas próprias terras. O marco temporal também significaria uma maneira mais fácil de ruralistas ocuparem o território, já que retirariam sua titularidade. O PL ilustrou mais uma das diversas batalhas entre ruralistas e indígenas (fonte: G1).

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Originários do Brasil inteiro se reuniram em Brasília para se manifestarem contra o marco temporal.

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No dia 15 de setembro, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu o julgamento do projeto do marco temporal, sem prazo para a retomada do julgamento.

É com um breve resumo dos acontecimentos de 2021 que a Rede abre uma reflexão e debate sobre os impactos que esse ano teve e terá na luta e história indígena.

quais foram os impactos da pandemia para o movimento indígena?

Kaio de Aquino Barros (@kaio_kx) é morador de Salvador, Bahia, possui 18 anos e é do povo Kariri-Xocó. Para ele, a pandemia, ainda mais em um ano como 2021, impactou diretamente o ativismo indígena, impossibilitando diversas pessoas de irem para as ruas e lutarem contra algumas ações do governo. “Nós indígenas não podíamos fazer os nossos protestos contra os projetos do governo que estão afetando e acabando com o nosso lar e o nosso povo”.

Wilson Cruz Nascimento (@willsoncroos) , ou Amayhã, que é seu nome indígena e significa “relâmpago”, tem 24 anos, do povo Pataxó e é professor. Nasceu na Aldeia Barra Velha, Bahia, mas atualmente mora em Carmésia, em Minas Gerais, na Aldeia Imbiruçu. Para ele, o maior impacto da pandemia foi a restrição, considerando que se tratam de povos que estão em constante contato com parente — termo utilizado por indígenas para falar de indígenas de outros povos — nas aldeias. “Isso foi uma barreira que nos impediu, até mesmo na questão de haver vários casos dentro da nossa comunidade. Isso acaba nos afetando de certa forma, por muito tempo tivemos que deixar de lado alguns costumes como rituais, que são as nossas danças e comemorações, devido a presença do vírus na comunidade”.

Neste cenário, coletivos , movimentos e ativistas precisaram se adaptar à quarentena e lutar de outra maneira. Kaio levanta a importância do ambiente virtual nesse período. “A única forma de reagir era nas redes sociais. Assim, muitos indígenas, principalmente os jovens, lutavam e resistiam pela internet, fazendo posts sobre a nossa cultura e sobre o que estávamos passando. Dessa maneira, muitos brasileiros viram como podemos ganhar visibilidade nessa grande batalha contra o genocídio e etnocídio”.

“A presença de nós, indígenas, está aumentando e ganhando muito espaço nas redes sociais. O impacto que isso vem trazendo é muito grande porque através da música, através de matérias, lives e muitas outras formas, mostramos que ainda continuamos firmes, essa é a principal importância e é uma das maneiras de nos adaptar” analisa Wilson.

Essa tendência a uma maior presença de povos originários nas redes sociais fez com que Kaio passasse a usar mais plataformas digitais. Como não costumava usar muito para a sua vida pessoal, passou a usar como um meio de ativismo. “Comecei a trazer assuntos sobre os povos indígenas para os meus seguidores, já que a maioria deles vive onde eu vivo e não têm muito conhecimento sobre isso. Assim, fui ganhando mais seguidores que me ajudaram e apoiaram a causa indígena”, relata o estudante.

Multi Instrumentista, cantora, compositora, estudante de licenciatura em música na Universidade Estadual do Ceará e estudante de biomedicina Uninassau Recife, Eduarda Lino Itapewa (@dudalinos_itapewa), de 24 anos, aproveitou a quarentena para explorar ainda mais suas habilidades musicais. “O último lockdown foi um momento criativo, participei do projeto “Arte Urgente” da Secult [programa de jovens talentos organizado pelo Instituto BR e Secretaria da Cultura do Estado do Ceará]. Lá criei, de forma inédita, 5 músicas que abordam várias temáticas, como a causa indígena, a causa feminina, sexualidade e liberdade de expressão”.

Compondo a liderança de seu povo Anacé da Aldeia Cauípe, em Caucaia, Ceará, Paulo França (@povoanacedaterratradicional) acredita que a presença de indígenas nas redes sociais teve um aumento considerável e que isso tem o poder de quebrar inúmeras barreiras e estereótipos. “ Nos fez chegar nos lugares mais distantes e faz com que a nossa luta e a nossa existência chegue para todos”.

Kaio aponta que com o maior número de indígenas nas redes e, consequentemente, mais engajamento para o movimento, acabou chamando a atenção também de não indígenas dispostos a colaborar com a luta. “Isso é muito importante pois assim conseguimos mais visibilidade e apoio para a causa, conseguimos ajudas, principalmente, nos acampamentos, onde recebemos várias doações para continuarmos a nossa luta contra tudo que o governo propõe contra o nosso povo”.

Para não indígenas que desejam contribuir com o movimento, Paulo recomenda: “Estar junto ao povo indígena conhecendo sua história, tirando estereótipos que foram criados para diminuir nosso povo, conhecer nossas aldeias, nossa crença, participando junto com nosso povo indígena em atos e eventos. Kaio acrescenta a importância de engajar com o conteúdo produzido por originários além de doações. “Ajudar repostando e compartilhando os nossos posts sobre o que vem acontecendo com o nosso povo, o que o governo está fazendo com o nosso povo”.

“O simples fato de buscar conhecer mais a história indígena já é de suma importância, entender que “índio” não é tudo igual e que não tem muita terra para pouco indigena. Pelo contrário, tem muito indigena pra pouca terra e, ainda por cima, nos massacraram e continuam massacrando para tirar o pouco que temos. Nos respeitando e entendendo que somos os primeiros habitantes, os verdadeiros guardiões da terra. Apoiar essa causa é cuidar junto conosco da Mãe Terra” completa Eduarda.

Para indígenas que procuram ajudar seu povo de forma remota, Kaio sugere: “Fazendo posts e lives para trazer conhecimento para os seguidores. Vendendo e rifando artes indígenas para ajudar a comunidade indígenas podem beneficiar a nossa luta”.

Em tempos como a pandemia do Covid-19, o apoio do governo e o oferecimento de recursos seria intrínseco para a população, principalmente de indígenas. Paulo aponta que seria necessária internet gratuita em aldeias e o apoio pela demarcação e direitos de povos originários. Mas, o que aconteceu foi o contrário, segundo o líder do povo Anacé. “Só buscou nos tirar direitos com marco temporal e outros projetos de lei. Querem apagar uma história que existe desde bem antes da constituição de 1988. Entregar a terra para posseiros e empresários para destruir o meio ambiente e matar de forma desumana todo o povo originário. Fazer o povo acreditar em mentiras que o próprio homem branco criou para nos invisibilizar, desacreditar nossa luta e tomar toda a nossa terra, acabando com seus recursos por ganância desenfreada e dinheiro. Cabe a nós, originários, lutarmos com nossa história, nossa fé, nossa cultura e, principalmente, com nosso sangue”.

“É um projeto que tira de nós tudo aquilo que temos direito Tira as nossas terras, a vida do nosso povo, das nossas crianças, nossas matas. E, isso não só afeta a nós, mas todos os brasileiros. Sem nossas terras, não temos onde ficar”, finaliza Kaio.

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