Delivery che te fa bene
Por Letícia Rocha, Sabrina de Morais, Susana Terao e Vitor Correia
Mesmo sem nenhuma ascendência italiana, a família Rocha fomenta uma paixão pela culinária napolitana. A massa é um elemento imprescindível e rotineiro para a mesa de domingo, seja ela macarrão, gnocchi ou lasanha. Não existe um apego a um método de preparo, o importante é que a essência dos pratos esteja ali, com diversidade de molhos e formatos.
A memória afetiva de Letícia Rocha pelas massas está relacionada ao macarrão à bolonhesa de sua avó paterna. O famigerado macarrão com carne moída e azeitona era a refeição que encontrava ao chegar da escola quando era criança e que a acompanhava durante a transmissão de X-Men na televisão. O prato também era o carro-chefe dos aniversários de Letícia e de Otávio, seu irmão mais novo. Para Tavinho, como seus familiares o chamam, o grande diferencial do macarrão era a azeitona. Desde criança, os dois têm costume de comer azeitonas, principalmente pelas tardes que passavam na casa dos avós.
Mas, o início de uma tradição de consumo culinário começou, de fato, quando o padrinho de Letícia, João, se casou em 2011 e fez a comemoração em uma cantina do Bixiga. Daquelas bem grandes, que, aos domingos, lotam e formam grandes filas de espera.
O gosto pelo local fez Letícia tentar revisita-lo em seu aniversário de 21 anos, 8 anos depois do casório. A família procurou na internet o endereço do local, mas acabou descobrindo que Gigetto havia fechado. O restaurante pode não existir mais, porém Letícia guarda até hoje os aromas e os sons que compunham o lugar, além dos sabores de seus pratos, lembranças que a fazem sentir como se estivesse lá ontem.
A ida para o Bixiga, contudo, não foi cancelada e, após rondarem o bairro passando por dezenas de cantinas, acabaram no “Cê que sabe”. A experiência foi uma das mais lúdicas e barulhentas da vida de Letícia, principalmente durante a tarantela.
O Bixiga é um bairro vivo. Um nicho, um ecossistema. Ele te conta histórias com pessoas, espaços e objetos, até mesmo com o próprio ar que você respira. É quase impossível pensar naquele bairro sem os carrinhos de cannoli e os simpáticos atendentes de cada estabelecimento. Porém, a tradição recém-criada com os pais e irmão precisou mudar esse ano. Com a chegada da pandemia de COVID-19, os planos para visitar o local novamente se alteraram.
A expectativa para esse ano era a festa de Nossa Senhora Achiropita que, anualmente, fecha as ruas do bairro para dar espaço à celebração, o que chamou a atenção da família. Mas aí, com o isolamento social, a experiência foi impossível de ser vivida em 2020.
Eis que, num sábado, a TV estava ligada apenas para fazer um barulho de fundo quando uma reportagem atraiu os Rocha. Falava do bairro, das cantinas e da festa que, acredite se quiser, aconteceria neste ano. Para a surpresa de todos, a festa teve que mudar, mas com seu grande propósito, ela ainda ocorreria.
Foi preciso mudanças e, para evitar aglomeração, ninguém poderia comer nas calçadas pela rua Treze de Maio, além disso só haveria opção de retirada. A família não teve dúvidas e decidiram que queriam ir até lá para buscar macarrões e fogazzas, a partir da encomenda pelo site da igreja.
Não era tão rápido. Os pedidos daquele sábado em si estavam acabados e seria preciso esperar mais uma semana para retirar. Outra vez, o empecilho não alterou a decisão.
A semana passou e quando chegou o fatídico sábado, mais um obstáculo veio assombrar a vida dos Rocha. Ansiosa, Letícia foi confirmar com seu pai o horário da retirada. Ele disse que iria checar no celular. Mas aí veio a surpresa: ele apagou a confirmação do pedido sem querer. Letícia tentou checar no site, que possuía uma estrutura rudimentar, mas o cadastro não era de uma conta e sim pelo WhatsApp. Ao colocar o número do seu pai, o e-commerce dizia que nenhuma compra havia sido feita com aquela sequência.
Diante do desespero da filha, o pai manteve a calma e disse que o cadastro estaria certo no local de retirada. O extrato do cartão, por exemplo, constava a compra. A dificuldade estaria apenas na comprovação de que a retirada seria naquele dia. Letícia, com toda a sua racionalidade capricorniana, não via sentido em atravessar a cidade, da Zona Leste até o centro, percorrendo mais de 16 quilômetros sem um comprovante de entrega.
A racionalidade foi transpassada pela fome e a família resolveu arriscar na conquista da massa. Com máscara no rosto e álcool em gel na mão, pai e filha entram no carro sem muita troca de palavras em função da briga catastrófica pelo e-mail de confirmação. Seguiram 40 minutos com um silêncio preenchido por uma rádio futebolística.
Ao chegar em frente à paróquia Nossa Senhora de Achiropita, notaram uma fila de pessoas. Havia duas mulheres dando informações. Seguravam um celular e uma lista. Enquanto se aproximavam, viram um casal que mostrava a confirmação. A ansiedade e raiva de Letícia passou a influenciar seu pai, que estava tenso.
Para o alívio de todos, a lista tinha o nome do pai confirmado. Letícia entrou para recolher a mercadoria, sua temperatura foi medida e ela caminhou até o balcão. Um senhor conferiu o pedido, que era o último do horário 18h-19h, e entregou quatro recipientes de macarrão e quatro de fogazzas.
Na volta, o clima de tensão entre o pai e a filha e também do contato com o mundo pandêmico foi amenizado pelo cheiro da refeição. A conversa girou em torno de como o centro estava movimentado, apesar das indicações de distanciamento social, e em como cada rua estava recheada de pequenas cantinas.
A chegada em casa envolveu outro ritual: higienizar tudo e tomar banho. Toda a saga para obter aquele refeição foi compensada pelo tamanho gigantesco das porções, acompanhadas de pão italiano e queijo. O molho tinha um cheiro tão bom que poderia ser usado de essência para cozinhar.
Tudo foi arrumado e a família se reuniu para comer. Entre uma garfada e outra, a discussão foi sobre a situação do mundo e a idealização de como teria sido o evento sem pandemia. A conversa tomou rumos engraçados, comentários de Otávio faziam Letícia quase se engasgar enquanto dava risada. E, naquele momento, observando seus familiares comendo, começou a lembrar de todas as vezes que entraram numa cantina no Bixiga ou numa praça de alimentação de shopping para comer massas e dos spaghettis na casa de sua avó em frente da televisão. Para ela, se alguma normalidade existia nesses últimos tempos, era vista num prato de macarrão.